quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Informar para Confundir

À medida que o segundo turno das eleições se aproxima, acirra-se o debate público sobre as opções à mesa. Embora tenha prometido mil vezes a mim mesmo que evitaria entrar em discussões inúteis, vez ou outra acabo sendo tragado por elas. Parte da culpa é minha, confesso. Quando questionado sobre minhas opções eleitorais, sinto-me impelido a demonstrar meu apoio ao PSOL, PSTU e PT. Acostumados à homogeneidade ideológica presente em seus círculos de convivência, a resposta causa espanto em meus interlocutores. Quando me permitem, pacientemente explico a escolha.

Na verdade, não vejo dificuldades em escolher entre o PT e o PSDB, já que ambos possuem diferenças em vários pontos. No entanto, como diz o título deste texto, o que impera é uma tentativa deliberada de confundir, anuviando essas diferenças de conteúdo em assuntos caros à população carente. Não é interessante discutir as políticas sociais, o salário mínimo, a educação, a saúde ou a segurança, mas insistir na corrupção ou, quando muito, na inflação. Partindo desse ponto, surge o discurso da mudança, fortalecido pelas “Jornadas de Junho” e pela já superada ascensão da Marina Silva e sua “Nova Política”.  Votar no Aécio realmente representa uma mudança, porém conservadora, que combina a manutenção do status quo com o apaziguamento da luta de classes, neste caso com o fortalecimento da repressão policial.

Felizmente, essa constatação é cada vez mais clara para a população brasileira. O resultado do primeiro turno mostrou claramente a clivagem socioeconômica dos eleitores. São cada vez mais nítidos para o cidadão mais humilde os interesses que pautam cada partido. Da mesma forma, embora caricato, acho coerente que moradores de Higienópolis vociferem seu ódio contra a mudança e apoiem um programa político que os favoreça. Uma vez que a maioria no Brasil é pobre, é necessário um esforço tremendo dos tucanos para tentar destruir a imagem que o PT possui de melhor opção para os pobres, esforço no qual contam com apoio sincero de boa parte da imprensa.



Há diversas formas de fazer isso. Uma, bem antiga, busca associar um partido à moralidade e o outro à corrupção. Essa foi a principal estratégia do golpismo da UDN contra Getúlio Vargas e Jango. Além do suicídio e do golpe, a ação logrou eleger dois candidatos anódinos, Jânio e Collor. Se a pele de cordeiro não veste bem o PSDB (mensalão mineiro, metrô, reeleição), seu candidato também não fica atrás (aeroporto “público” em Cláudio, nepotismo). Isso não é, contudo, suficiente para impedir que partido e imprensa deixem propostas de lado para insistir no “mar de lama” do adversário1.  Não cabe defender corrupção de um ou outro lado, óbvio, mas vazamentos seletivos de investigações, na véspera das eleições, enfraquecem a já frágil democracia. Felizmente, parece que o veneno está voltando para o agressor.

A segunda artimanha é tentar ganhar a paternidade do programa Bolsa Família no grito. O programa é uma evolução do Bolsa Escola, feito no governo FHC. Daí a dizer que o PT meramente seguiu uma política social do PSDB é de uma miopia sem tamanho. Só quem não quer não percebe a brutal diferença qualitativa e quantitativa que o programa sofreu a partir de 2003. Não foi apenas a conjuntura econômica que favoreceu a ampliação do Bolsa Família, mas, sobretudo, priorização no governo petista para as questões sociais. Embora o Bolsa Família seja a política social de maior destaque no Brasil (e no mundo), ele acompanha o Luz para Todos; Minha Casa, Minha Vida; Plano Brasil Sem Miséria; Pronatec; Economia Solidária; Mais Alimentos; Pronaf etc. De forma bem diferente, quando no poder (1994-2002), o PSDB priorizou a política monetária (controle da inflação, juros altos), passando a conta aos assalariados (desvalorização do salário mínimo).  

Outra da série “informar para confundir” é relativa à discussão sobre a economia. Neste ponto, o PSDB resume o período FHC com base em apenas um indicador econômico: inflação. Os tucanos ignoram todos os outros índices, como PIB, balança comercial, desemprego, reservas internacionais, taxa de juros, salário mínimo etc. Do mesmo modo, a crítica rasteira à economia atual limita-se à inflação e ao PIB. Enquanto o crescimento econômico realmente encontra-se baixo, não se pode afirmar o mesmo da inflação, ligeiramente superior ao teto2. Sem desprezar os malefícios da inflação, deve-se esclarecer que a dificuldade para controlar a inflação em períodos de crise é muito maior, por conta das políticas anticíclicas (inflacionárias) de incentivo ao desenvolvimento, que, se não aumentaram o crescimento, permitiram impressionante diminuição do desemprego (4,9%)3. Em 2002, final do governo FHC, o desemprego superava 11%4 e a inflação, contradizendo o atual discurso tucano, chegou a 12,53%5.




Mesmo admitindo que o governo Dilma deixou muito a desejar em diversos aspectos, as eleições, ao contrário do que diz a grande mídia, não é um plebiscito. Votar na Dilma não representa um endosso ou não ao seu governo, mas, sim, uma escolha entre duas propostas bem distintas. Quero mudanças, sim, mas que transformem o país de maneira ainda mais intensa. Ao contrário do que prega a imprensa, o voto em Aécio representa um grande retrocesso. Detalharei essa questão no próximo texto, ainda antes das eleições.


1-      A expressão “mar de lama” era usada por Carlos Lacerda (UDN) para designar o governo de Getúlio na véspera do suicídio deste. Aécio requentou a expressão no debate da Band (14/10/2014).
2-      O valor da inflação acumulada em 12 meses está em 6,75%, superior ao teto da meta (6,5%).
5-      Calculadora da inflação. Utilize o período janeiro-dezembro de 2002. http://economia.uol.com.br/financas-pessoais/calculadoras/2013/01/01/indices-de-inflacao.htm

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Formação da identidade da elite brasileira

A formação da elite brasileira, embora influenciada pela formação do povo brasileiro em sentido amplo, não se confunde com esta. Assim, se o amálgama das matrizes indígena, europeia e africana foram os fundamentos de nossa cultura, é preciso ir além e verificar de que maneira a elite impediu ou tentou impedir que tal influência se solidificasse em seu seio. Mais de um século após a abolição da escravidão, a elite brasileira ainda é branca, almeja assemelhar-se aos europeus e consumir como os estadunidenses. Por quê?

No início do século XIX, a influência europeia no Brasil e nos demais países sul-americanos foi decorrência direta da inserção destes países na distribuição internacional do trabalho então vigente. Diferentemente das colônias hispano-americanas, entretanto, o Brasil passou por experiências peculiares que acentuaram não apenas o contato político com a Europa como também o cultural. Até 1827 não havia universidades no Brasil, o que exigiu dos filhos de senhores e políticos a formação além-mar, notadamente nas universidades de Coimbra e Montpellier. Em função disto, como contraponto ao que existia na América Espanhola, houve certa homogeneidade intelectual das elites brasileiras, o que foi considerado por José Murilo de Carvalho1 fator preponderante nos acontecimentos políticos do século XIX.

Somado à formação intelectual, a transmigração da corte portuguesa, em 1808, aprofundou definitivamente o contato com a cultura europeia. Centro político do que será o Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves (1815), o Brasil recebeu ainda cerca de dez mil palacianos fugidos de Napoleão2. Ademais, a abertura dos portos (1808) e, sobretudo, o Tratado de Navegação e Comércio com a Inglaterra (1810) inundaram o Rio de Janeiro de comerciantes e produtos ingleses. O quadro de Jean-Baptiste Debret representando a coroação de D. Pedro I resume bem: em terras tupiniquins, o que melhor representava o grupo dirigente da nação eram a pompa, os lustres, os títulos de nobreza e os rituais vigentes na Europa de 1822. Instaurou-se uma monarquia constitucional nos trópicos!



Os anos se passam e o abismo entre discurso e realidade cresce e constrange. Enquanto na Tribuna parlamentares exaltam ideais de liberdade e justiça, repetindo Tocqueville, Bentham e Mill, a escravidão envergonha e corrói toda a sociedade. Em clássico ensaio, “As ideias fora do lugar”3, Roberto Schwartz aponta essas e outras incoerências de uma elite que se queria ilustrada, culta, europeia.

O desejo de identificação com o europeu não esconde, entretanto, outro desejo: o de não ser negro, não ser índio e não ser mestiço. A negação de tais grupos sociais os condena até hoje, mas o paroxismo ocorreu com as teorias racistas e o projeto de embranquecimento da população no final do século XIX.  Algum esforço contrário pode ser verificado com o movimento romântico indianista, cujo maior expoente foi, ironicamente, um defensor da escravidão negra, José de Alencar4. Ainda assim, a despeito de manter certas características da cultura indígena, este movimento literário buscava associar, artificialmente, o índio à moral e à nobreza europeia. Mesmo a miscigenação, cultuada a partir da década de 1930, tem servido mais à conveniência de minimizar a força e a riqueza que diversas culturas (negra, quilombola, indígena, sertaneja e outras) possuem individualmente. Paradoxalmente, valoriza-se a miscigenação mais como uma categoria étnico-cultural amorfa, sem rosto, utilizada para negar vicissitudes culturais de diferentes grupos sociais. Ou, para ficar num exemplo recente, não é difícil encontrar o argumento da miscigenação sendo utilizado para deslegitimar os programas de ação afirmativa.

Feita a associação da elite brasileira aos valores culturais da Europa Ocidental, falta apontar a relação contemporânea desta elite com a cultura branca estadunidense. É inegável que a “civilização” impõe-se pelo poder, e neste caso nada mais natural do que nos submetermos à inundação de filmes, livros e músicas provenientes do mais rico e poderoso país. Essa explicação, contudo, é parcial. Se no século XIX a elite buscou diferenciar-se de pobres, negros, índios e mestiços através da identificação com o europeu, atualmente e à medida que fatores fenotípicos perdem relevância socioeconômica, o principal elemento de distinção é o consumo.

É por meio da aquisição dos chamados “bens posicionais”5 que a elite contemporânea se destaca e alcança notável proeminência na sociedade. Os bens posicionais são bens que conferem status ao proprietário por possuírem alguma exclusividade. São usualmente associados aos bens de luxo, como mansões, carrões, roupas de grife, relógios caros, viagens exóticas, mas também outros utensílios mais acessíveis como o último lançamento de iPod. Em uma sociedade que cultua o individualismo, a posse de bens posicionais ganha uma relevância impressionante. Assisti-se a uma verdadeira “corrida armamentista do consumo”, nas palavras de Eduardo Giannetti.

Foi Rousseau6 quem melhor analisou o processo de criação de “novas necessidades”. Segundo ele, o luxo é necessário justamente porque discrimina as pessoas. Antigas formas de distinção social, antes associadas a um direito divino ou à nobreza, foram sendo sucedidas, durante o Iluminismo, pela posse ou não de itens de luxo, como a fartura de comida ou obras de arte. A origem da desigualdade está, portanto, na propriedade, desde então o direito burguês mais violentamente defendido.

A explicação de Rousseau faz ainda mais sentido quando adaptada a contemporaneidade, já que o consumismo tem-se desenvolvido incrivelmente. Além disso, é justamente nos países que possuem maior desigualdade social que o consumo exacerbado é mais caricatural, como nos Estados Unidos e Brasil. Aqui como lá, desigualdades étnicas se confundem com desigualdades socioeconômicas. À segregação étnica, impõe-se outra, a econômica. E é por meio do consumo de bens posicionais que se escancara esta última. A importância que se dá, no Brasil, a um carro, a um bem eletrônico ou a uma viagem a Punta Cana pouco tem a ver com o valor de uso, mas, sim, com a capacidade que este bem possui de “diferenciar” uma pessoa de outra. Compreende-se, então, de que maneira a biografia de Steve Jobs pode ser mais lida que a de Martin Luther King ou Gandhi. Aquele, talvez melhor que ninguém, apreendeu os meios mais eficientes de gerar esse novo tipo de valor. O resultado impressiona: multidões fazem filas pelo efêmero privilégio da exclusividade.

Ainda que a emulação do padrão de consumo americano esteja presente em toda a sociedade, é na elite e na classe média alta que ela é mais perniciosa, uma vez que tal estrato monopoliza o poder econômico e político. Em um país eminentemente agroexportador, a ode ao liberalismo econômico mal disfarça o real interesse em adquirir bens de luxo importados. O custo do atraso econômico é repartido, como usual, por toda a sociedade. A mediocridade de um comportamento que aprofunda a chaga de milhões de habitantes no planeta talvez encontre limite apenas na ameaça à vida humana, fruto do esgotamento dos recursos, da poluição e do aquecimento global. 

Nos últimos anos, o Brasil acompanhou uma redução da desigualdade, decorrência direta de programas sociais feitos em escala inédita. Políticas de ação afirmativa, como as cotas raciais, têm permitido a ascensão de negros à condição de nova classe média. Por outro lado, o consumismo tem pouca ou nenhuma relação com a cor da pele ou a etnia, o que mantém o agravo desse consumo desenfreado. Que as pessoas prescindam dos bens posicionais e se destaquem apenas por seus “talentos posicionais” pode, infelizmente, soar utópico. Mas, se a racionalidade e a sensibilidade humana não encontrarem uma saída, há uma chance de que a fúria ambiental o faça. Veremos.

1- Teatro das Sombras; José Murilo de Carvalho.
2- História do Brasil Nação, vol 1 (1808-1831); coordenação Alberto da Costa e Silva.
3- Ao vencedor as batatas; Roberto Schwartz.
4- Cartas a Favor da Escravidão; Tâmis Parron.
6- Discurso Sobre a Origem da Desigualdade; Jean-Jacques Rousseau

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Argo


Sei que busco um caminho mais tranquilo. Se a intenção era escrever sobre cinema, por que não Fassbinder, Tarkovski, Herzog ou Lars von Trier? Acho que me faltam os “cojones” pra empreitada. Ou é preguiça de encarar as metáforas e simbologias de “Anticristo”, por exemplo. Em todo caso, acho que o esforço valerá, ao menos, para dizer que o “rei está nu”. Este é o caso de Argo.



Tenho curiosidade sobre o tema, a Revolução Iraniana. Aliás, um filme que não tenha a Europa Ocidental ou os Estados Unidos como cenário já ganha algum ponto. Para apimentar o paladar, o Oscar de melhor filme entregue pela primeira dama americana e a indignação imediata do governo iraniano. No mínimo, o filme deve ter um apelo político forte, para justificar a celeuma, pensei. Rendi-me à curiosidade e fui assistir ao danado, torcendo para ser surpreendido.

Mesmo não sendo adepto de teorias da conspiração, acredito que neste caso houve um conluio entre o Ahmadinejad e o governo americano para promover o filme. Somente isso justificaria tanto barulho por uma película anódina.

Para começar, as únicas ofensas ao regime dos aiatolás ocorrem nas cenas de entrada e saída do espaço aéreo iraniano, momentos em que a comissária de bordo anuncia a proibição ou relaxamento do consumo de bebidas alcoólicas. Dá-se para ter uma boa ideia dos rumos “progressistas” que a revolução estava tomando. É bem verdade que por aqui proíbem “unas cositas” e, quanto ao álcool, a Lei Seca está a caminho, mas convenhamos: se tu não podes beber a 40 mil pés de altitude, imagina o que não estás impedido de fazer em terra. O Irã prometeu uma réplica cinematográfica. Muito provavelmente enaltecerá os valores da família e da religião, tal quais outros movimentos reacionários.

Então o que haveria de diferente em Argo? Não ouvi ou li críticas mais interessantes do que apontar certa imparcialidade do diretor Ben Afflect ao tratar da relação iraniano-americana pré-revolucionária. Isso porque o filme faz um retrospecto histórico, no qual mostra que os defensores da paz e liberdade ajudaram a instalar outro regime despótico e impopular no planeta, mais um adepto da tortura e de execuções políticas. Parece uma verdadeira cartilha reacionária, aplicada uma miríade de vezes na América Latina, África e Ásia durante todo o século passado.  Mas é no mínimo questionável que tenha havido grande ousadia do diretor nessa “autocrítica”. Cada vez mais distantes dos acontecimentos, fica claro o tipo de participação geopolítica que os EUA empreenderam nas últimas décadas. Em tempos de Wikileaks, mesmo os mais ingênuos possuem uma noção do trabalho sujo cometido recentemente no Afeganistão (2001), Venezuela (2002), Iraque (2003). Não houvesse esse mea-culpa, o filme se assemelharia demais aos congêneres hollywoodianos que têm a guerra como cenário. Pois, todos os outros apetrechos já estão presentes: perseguições fantásticas, tiros e a bandeira americana balançando no final. Aos olhos incautos, todavia, bastou leve verniz de imparcialidade para esconder os maniqueísmos clássicos do cinema americano.

O diretor esforçou-se em mostrar a corrente revolucionária fundamentalista islâmica, que acabou, de fato, predominando. Ignorou a participação de outros setores da sociedade, muitos dos quais progressistas. Desdenhou o caráter político da invasão da embaixada estadunidense em Teerã, um ato de soberania popular, anti-imperialista, ao mostrar uma violência desordenada, que seria fruto do radicalismo religioso. Mais um filme a reforçar a visão ocidental estereotipada do oriente, o que Edward Said denominou Orientalismo. Em vez de tentar desvendar as especificidades de povo plural e multifacetado, optou-se pela visão limitada da Fox News.


Para mim, foi a ambientação “anos 70” o ponto alto do filme. E a cena da festa regada a uísque na véspera da fuga, o clímax. Especialmente o momento em que toca, direto de uma vitrola, “When the levee breaks”, do Led. Visão particular de um amante da boa boemia.


Deixo duas dicas para quem quiser conhecer um pouco sobre a Revolução Iraniana. Há um documentário1 premiado da BBC, que me pareceu bem completo e didático. E o filme Persépolis, uma animação bela e sensível, que a narra a revolução a partir do ponto de vista de um setor mais progressista e laico da sociedade persa.

sábado, 8 de junho de 2013

O negro e o preconceito (parte 2)

Sexta-feira à noite, as sinapses nervosas sentindo o peso de uma semana longa, resolvi assistir ao último filme do Tarantino, Django. Não falo isso para menosprezar o diretor, que por sinal aprecio. Considero-o uma feliz exceção no universo de filmes de Hollywood, seara em que a previsibilidade é regra. O curioso é que, apesar disso, o cinema do Tarantino não chega a se contrapor à Hollywood, aproximando-o, por exemplo, dos euro-asiáticos. Muito pelo contrário, Tarantino consegue justamente tirar proveito do maniqueísmo e da violência hollywoodianos, fazendo uso da sátira e do exagero. Unido a isso, minha curiosidade aumentou com uma entrevista que li do diretor Spike Lee, em que, a despeito de não ter visto o filme, criticava a maneira com que o colega tratou de assunto tão sério.

Embora eu entenda, confesso que discordo do diretor de Faça a coisa certa. É possível abordar temas polêmicos de diferentes maneiras; pior é sacralizá-los. Acho que, de certa forma, Tarantino atingiu o seu objetivo. Se a intenção era escancarar a brutalidade do sistema escravista e a estupidez da sociedade sulista, conseguiu. Como fez com os nazistas, em Bastardos Inglórios, faz uma espécie de julgamento tardio dos racistas, impunes pela injusta anistia do tempo.



Até aí nenhuma novidade, acho que era esperado por todos. O problema é outro. Talvez por desconhecimento do assunto, o diretor conseguiu fortalecer um dos piores estereótipos da escravidão: o do escravo manso e subserviente. Não há uma só cena em que o negro lute contra sua atroz situação. Mesmo humilhado e diminuído de diversas formas (a cena da rinha entre escravos é visceral), o negro é impassível, quase acomodado com seu trágico destino. Eu poderia enumerar quinhentas cenas em que os personagens negros demonstram apenas medo e fraqueza.

Não há dúvidas de que a brutalidade extrema foi, muitas vezes, eficaz. Mas não impediu, de maneira alguma, que o negro lutasse, tentasse a fuga ou vivesse em quilombos, mesmo que isso significasse a morte. Aliás, não foram poucos os que a elegeram como saída. Se se considera que o período retratado no filme é antecedente à guerra civil e à abolição, percebe-se a terrível inverossimilhança do filme. Não é um erro ingênuo estigmatizar o negro como alguém sem ímpeto para a luta. Pelo contrário, Tarantino aproximou-se dos que não enxergam a existência e a legitimidade de uma luta que se prolonga por nossos dias.
Poder-se-ia argumentar que o personagem principal, o Django, representaria uma figura metafórica da luta dos escravos. A hipótese, entretanto, não se sustenta. Mesmo matando muitos brancos sulistas, o faz mais por vingança do que por liberdade. De qualquer forma, como único negro que não se curva, o filme eleva-o ao patamar de mito, de exceção. No final do filme, o próprio Django repete o discurso racista que ouvira do dono da plantation de algodão, o de que ele seria um negro em 10 mil.



Essa visão da realidade do negro pré e pós-escravidão não é um mérito da ignorância do Tarantino. No Brasil, por muito tempo sustentou-se a ideia de que a liberdade do negro estava condicionada à vontade do branco. Assim, exaltaram-se importantes abolicionistas brancos como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, mas pouco crédito deu-se a José do Patrocínio ou Luiz Gama. Isso sem falar dos milhares de negros que compuseram centenas de quilombos pelo país, heroicos combatentes. Olvida-se do sangue derramado em Palmares, na Conjuração Baiana ou na Revolta dos Malês, embora lembre-se da assinatura da princesa Isabel. Decretada a abolição, o discurso modifica-se, mas não a intenção. Deixados a deus-dará, a desgraça dos negros foi constantemente ignorada, sem um tratamento específico. Fortaleceu-se, todavia, o falacioso discurso da democracia racial, de um país sem preconceito. A miséria seria, portanto, responsabilidade do próprio negro. De certa forma, a relutância em aceitar as cotas raciais são exemplos desse persistente preconceito velado.


Incrível como o preconceito pode ser tacanho. Em pesquisa1 realizada no Brasil, em 2003, 96% dos entrevistados afirmaram que não possuíam preconceito. Ao responderem outras perguntas, no entanto, apenas 26% não manifestaram algum tipo de preconceito. O filme do Tarantino carrega esse tipo de preconceito, provavelmente inconsciente, fruto de uma grande ignorância que está presente em toda a sociedade. Uma pena, pois o filme tem bons momentos, bons diálogos. Ficou condenado. Agora, chego a entender um pouco melhor o Spike Lee. Ao tentar fazer uma leitura crítica da escravidão, Tarantino fez um filme paradoxal, com um infeliz viés racista. 

1- Racismo no Brasil, percepções da discriminação e do preconceito racial no século XXI; SANTOS, Gevanilda; SILVA, Maria Palmira (organizadoras).

Mais um agente da USAID no Brasil

Acho que o momento é incrivelmente oportuno para assistir ao filme “Estado de Sítio”, do grego Costa-Gavras. Resumidamente, o filme descreve o sequestro de Dan Mitrioni, agente da USAID em plena ditadura uruguaia. Sob a fachada de uma organização civil, no bojo da Aliança para o Progresso, a USAID cooperou com policiais e militares latino-americanos, antes e depois dos diversos golpes militares. A preocupação com a ordem ensejou a modernização do aparato repressor dos países subdesenvolvidos. Além de interferir financeiramente nas eleições e de fornecer armas e equipamentos, os estadunidenses ensinaram-nos eficientes técnicas de tortura.



A pertinência do filme está na indicação da nova embaixadora estadunidense no Brasil, Liliana Ayalde, também funcionária da USAID. Não é pouca coisa. Para os mais esquecidos, vale lembrar que um dos principais articuladores do golpe militar de 1964 foi o embaixador estadunidense Lincoln Gordon. A conjuntura geopolítica é outra, mas os interesses permanecem. 

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/112717-retrospecto-de-agencia-inclui-acoes-polemicas.shtml

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Brasil Político: de 1978 a 2022


Em se tratando de política, qualquer previsão está mais próxima da especulação ou de algum interesse disfarçado. Poucos anteviram o colapso soviético quando este ainda parecia ameaçador aos estadunidenses no começo da década de 1980. Do golpe militar de 1964, por outro lado, não se pode dizer que foi algo completamente inesperado, se se considera as inúmeras tentativas golpistas civis-militares que ocorreram a partir da ascensão de Vargas em 1951. Não pretendemos vaticinar algum grande acontecimento que mudará os rumos do país, quiçá do mundo. O objetivo deste ensaio é bem mais modesto: analisar a conjuntura política recente do Brasil e conjecturar sobre o seu futuro.

Quase 30 anos de estabilidade democrática e outros 13 de relativa estabilidade econômica (considerando a crise de 1999 como marco) permitem uma definição menos obscura dos cenários e dos atores envolvidos no processo político brasileiro. Ainda assim, antes de entrarmos no período democrático, é preciso verificar a herança do período antecessor. O odioso golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil foi também responsável pelo esmagamento dos movimentos populares e esquerdistas e por um desenvolvimento econômico pautado na ampla concentração de renda. Ainda na primeira metade da década de 1970, surgem os primeiros sinais de esgotamento desse modelo de desenvolvimento autoritário. O processo de transição “lento, gradual e seguro”, além de buscar garantir a transição para um governo civil conservador, foi uma tentativa – no final bem-sucedida – de safar-se das condenações pelos excessos cometidos (daí a Anistia Geral e Irrestrita de 1979).

Já nos primeiros anos da década de 1980, a “década perdida”, é possível identificar os que seriam, até hoje, os principais atores políticos. O PMDB, a oposição moderada, guarda-chuva político que congregava de antigos apoiadores do golpe a reformistas, manteria sempre a característica que o tornara forte: a heterogeneidade de seus membros. A falta de uma ideologia clara, e mesmo de um programa político, irá afastá-lo das disputas presidenciais, fortalecendo, por outro lado, seu caráter parasita. Apesar de o fisiologismo ser uma característica comum de uma miríade de outros partidos menores, nenhum conseguiu superá-lo em competência e tamanho. Reproduz-se na política o clássico conto “Teoria do Medalhão” do Machado: é imperativo manter opacas e ambíguas as ideias para lograr alianças tão duradoras ou flexíveis quanto conveniente.

Ainda na década de 1980, surge, como uma dissidência do PMDB, o partido social-democrata. Centro-esquerda, o PSDB nascia como uma opção entre a massa amorfa do PMDB e a esquerda radical do Partido dos Trabalhadores. Apresentava um programa claro de busca de bem-estar social, aos moldes dos bem-sucedidos congêneres europeus. Foi formado por antigos militantes de esquerda, intelectuais e economistas nacionalistas e reformistas. É difícil estabelecer o momento exato da guinada à direita, mas é certo que, uma vez no poder (os anos FHC 1994-2002), aplicou uma política econômica liberal-ortodoxa, de corte de gastos sociais e privatizações. Após perder três eleições consecutivas para o PT, o partido tem grande dificuldade em encontrar uma “nova” identidade, a despeito de demonstrar afinidades com o liberalismo do Estado mínimo e teses conservadoras, como rejeição do casamento gay e da descriminalização do aborto.

O último ator político a ser analisado é o Partido dos Trabalhadores. No final da década de 1970, os “gorilas” já não eram capazes de esmagar com a mesma facilidade os movimentos sindicais. A política de controle salarial do regime militar, responsável pela baixa inflação na época do “milagre”, impôs perdas reais ao ganho do trabalhador. Era preciso “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”, como Delfim Netto defendia, eufemisticamente, a acumulação de capital do empresariado. As greves do ABC serão um importante movimento político de desestruturação do regime autoritário. Da união de operários à intelectuais de esquerda, notadamente os da USP, surge o PT, tendo o socialismo como bandeira. Progressivamente, o partido vai, contudo, ocupando o vazio deixado pelo PSDB na esquerda socialdemocrática, processo explicável pela busca de apoio político e financeiro. Essa clara evolução pode ser percebida pelas transmutações sucessivas que ocorreram ao largo das diversas eleições que seu principal candidato, Lula, concorreu. A moderação ideológica andou lado a lado à entrada de recursos financeiros para as campanhas eleitorais, financiadas pelos grandes capitalistas.

Um ponto importante em qualquer análise política passa pela observação do sistema eleitoral, processo por meio do qual se obtém o poder. Na teoria, as eleições representariam uma espécie de contrato social, em que a soberania popular é delegada a políticos profissionais. Ao se constatar que, poucas vezes, o povo é o fim das políticas públicas, devemos então perquirir a razão do equívoco. A farsa das democracias liberais, notadamente no Brasil, reside no fato de que o poder político é de fato exercido pelos detentores do poder econômico. A estreita correlação dos financiamentos de campanha eleitoral com os resultados dos pleitos escancara o autoritarismo por trás do verniz democrático. Sem ignorar outros fatores, os quais serão abordados a frente, é extremamente didática a ascensão do PT ao poder federal, só possível com os novos aportes financeiros. Na última eleição, a presidente eleita contou com ainda mais recursos que os partidos considerados conservadores, compromissos que comprometerão o plano de governo do partido.

O vazio deixado pelo PT, passando da esquerda radical a uma posição moderada e ambígua (centro-esquerda), está sendo ocupado pelas dissidências do próprio partido, o PSTU e o PSOL. No entanto, atualmente, a conjuntura política e a organização dos movimentos populares não são os mesmos de outrora. Se o movimento operário teve seu grande momento nas greves do ABC e ainda alguma importante participação política ao longo das décadas de 1980 e 1990, a sua relevância foi em grande parte esvaziada com a chegada do PT ao poder. Além da cooptação de parte do sindicalismo pelos petistas, processo análogo ao ocorrido no trabalhismo de Vargas, há uma razão global e estrutural que agrega outra explicação à diminuição da relevância do operariado como força política. Trata-se da decadência do paradigma fordista de produção, que, além de exportar a fabricação de bens de massa industriais dos antigos centros desenvolvidos para a periferia, transferiu o eixo econômico do setor industrial para o setor de serviços, processo conhecido como desindustrialização. Essa “nova” mão de obra possui algumas características que não devem se modificar no curto prazo: não são sindicalizadas, tem baixo perfil reivindicatório e são relativamente bem remuneradas. Embora o Brasil seja um caso especial, em que convivem agricultura tradicional, serviços e indústrias “fordistas”, a perda de importância relativa destas minimiza o papel político da classe operária.

O movimento rural é outro exemplo. Tradicionalmente associados ao PT, os movimentos de trabalhadores do campo também diminuíram em quantidade e qualidade. Paradoxalmente, a situação do campo não sofreu melhoras quanto à distribuição de terras, como se poderia imaginar. A explicação mais bem aceita refere-se aos efeitos do programa Bolsa Família nas comunidades rurais carentes. A ajuda dada pelo governo foi o suficiente para desmobilizar um imenso contingente de trabalhadores rurais que lutavam por uma distribuição de terras mais justa. Na medida em que se analisa a dura rotina nos acampamentos, entende-se a natureza da troca de vida.

Tais partidos de extrema esquerda, contudo, possuem uma agenda ativa, agindo conjuntamente com uma miríade movimentos populares, mas de pequena relevância se analisados isoladamente, como os movimentos urbanos pela moradia e pelos direitos de minorias (negros, homossexuais, mulheres). Levando em consideração a impossibilidade de obtenção de recursos financeiros para as campanhas eleitorais e, logo, participando apenas de forma periférica na política, sua importância restringe-se na capacidade de mobilização popular, raros lampejos de cidadania do povo brasileiro, por cuja realização são em parte responsáveis.

Feita uma introdução dos atores e do modelo político utilizado no país (a dita democracia representativa), exporemos um possível quadro político para os próximos 8 anos (2014-2021), abstendo, portanto, de conjecturar sobre as eleições presidenciais de 2022. Os modelos políticos que serão utilizados como base foram apresentados à população brasileira nos anos 1990 e 2000. Embora o país possua muitos partidos políticos, a divisão bipolar (PT x PSDB) é uma boa aproximação em âmbito federal, fato que é também comum a diversos países, como os EUA. A previsão se baseará em uma macrocomparação dos dois modelos, na opinião popular e em perspectivas econômicas.

A divisão da política brasileira em dois modelos, de cara, atinge um mito, consagrado nos primeiros anos do governo Lula: o de que não haveria diferenças substanciais entre os dois partidos quando no poder. O tema é polêmico, e uma explicação completa fugiria de nossos propósitos. O processo de moderação por que passou o PT nos 1990 realmente descaracterizou a antiga agenda socialista, como já dito. A aproximação a setores conservadores, associados à grande propriedade rural e ao mercado financeiro, assentou o compromisso do partido com o capital e a propriedade. As ambiguidades são várias, e seria necessária uma crítica dedicada a elas.

Ainda assim, cabe-nos apontar as diferenças. Não obstante a timidez ante a prometida revisão da privatização da Vale do Rio Doce, o governo petista buscou fortalecer empresas estatais como a Eletrobras, Petrobras e Telebras, em contraste com a política antecessora nesse campo. O Estado brasileiro voltou a ter um papel de destaque na promoção do desenvolvimento nacional, uma visão realista das limitações estruturais da inserção atrasada e periférica no plano exterior. O país aproximou-se de Estados negligenciados pela administração tucana, como os diversos países do Sul (Oriente Médio, América Latina, África). O realismo ditou uma relação cautelosa com os Estados Unidos, ciente dos ganhos comerciais, mas precavido com os antigos ímpetos imperialistas (o enterro da Alca foi um marco).

Foi, contudo, na área social que as diferenças são mais perceptíveis. Logo no início do governo Lula, era deixada clara a diferença de prioridade dada às questões sociais por meio do anúncio programa Fome Zero. Seguiria uma política inversa à aplicada pelos militares a partir de 1964, mantida em menor grau até 2002, ou seja, um programa de aumentos reais no salário mínimo. Com o Bolsa Família, conjugaram-se auxílio financeiro pelo governo a contrapartidas na saúde e na educação pelos beneficiados. Houve ainda boas iniciativas na área de moradia popular. Parecia a aplicação de 20 anos de programas de governo, engavetados a cada derrota eleitoral. Punha-se em prática, e com sucesso, 20 anos de oposição política.

Não seria justo não considerar algumas ações positivas dos anos FHC. Ainda que para sua consecução tenha consumido virtualmente todas as reservas internacionais do país, a tão vociferada estabilidade monetária foi uma conquista significativa, com efeitos diretos na manutenção do poder de compra dos brasileiros. Sendo a inflação uma chaga que prejudica justamente os mais pobres, o seu controle pode ser considerado a principal ação social do governo liberal. No entanto, o ato de se retirar, pela intervenção estatal, milhões de brasileiros da miséria, não teria sido feito pelos partidários da “mão invisível”. O curioso é que, ao se ouvirem os discursos dos antigos dirigentes liberais, tem-se a impressão de que as políticas sociais eram fato presente. O pequeno alcance das medidas existentes, somado ao baixo desenvolvimento econômico, deve explicar a alcunha de “década perversa”, dada pelo historiador Amado Cervo1. Para o povo, o período representou desemprego e baixo poder aquisitivo, este último por conta do salário mínimo aplicado à época.

Faltou ao governo petista, porém, ações efetivas na universalização do saneamento básico, que, aliás, apresenta dados vergonhosos (próximo de 50% dos brasileiros não têm esgoto recolhido). Na Educação houve alguns progressos, dos quais merece destaque a extensão do número de cotas raciais, reforma importante para o acesso democrático ao ensino. Seria provavelmente um exagero, contudo, considerar que houve uma ruptura, o que de certa forma representou uma decepção para muitos. Historicamente, a emancipação intelectual e, logo, política tem sido uma luta das esquerdas, sendo tão ou mais importante que a “emancipação” econômica.

Não foi única área negligenciada. Pior do que a Educação ficou a situação do trabalhador rural, moeda de troca após o casamento informal com os ruralistas. Ainda que alguma coisa possa ser dita a respeito do Pronaf (Programa de Ajuda à Agricultura Familiar), a política do campo do PT foi voltada primordialmente ao benefício das grandes propriedades do agronegócio. A aliança com os ruralistas foi um dos compromissos que mantiveram o partido refém das classes dominantes. Como se percebe, a ascensão ao poder cobrou o seu preço.

O silêncio covarde em relação à questão fundiária brasileira, palco de assassinatos impunes e recorrentes, está longe de ser uma preocupação da população brasileira, politicamente domesticada. As pesquisas de opinião indicam uma aprovação contínua e avassaladora aos governos petistas, sequer maculados, para desalento das elites, pela estridente campanha midiática em torno do julgamento do Mensalão. Deduz-se que a grande – e inédita – aceitação deve-se a comparação que o povo faz entre os dois modelos, o liberal e o esquerdista-hesitante. Um sinal de que, mesmo após uma década, a memória popular ainda condena, talvez inconscientemente, o Brasil dos anos 1990.

No intuito de desvendar o futuro político do país, uma previsão da economia – talvez a parte mais difícil, pois cheia de incertezas – será o último elemento analisado. Após uma década de relativo crescimento, pode-se dizer que passamos por um momento de virtual estagnação econômica. Os esforços do governo Dilma, ainda infrutíferos, estão direcionados no sentido de aumentar o investimento privado, baixíssimo mesmo para o padrão brasileiro. Por conta dessa força tarefa, que congrega iniciativas públicas e privadas, a expectativa de que a economia deslanche é grande. Ainda que consideremos, para os próximos anos, um cenário de baixo crescimento, talvez decorrentes de crises externas, haverá ainda ganhos derivados do aumento do mercado consumidor interno, impulsionados pela expansão dos programas sociais. O duplo efeito desses programas, econômico e social, deve dar fôlego, em último caso, para um novo ciclo de crescimento – baseado no consumo e com alguma inflação –, além do aumento da base de apoio do governo na população.

Frente ao exposto, é possível asseverar serem amplas as chances de que o PT ganhe não apenas a próxima eleição como também a mais distante, de 2018. Consideramos que mesmo incertezas econômicas não devem modificar esta previsão, que seriam ainda mais confirmadas se considerássemos a desorganização do PSDB, dividido por pugnas internas. Foi levado em consideração, ademais, o provável aumento da base popular do governo, provindo da melhoria da qualidade de vida dos brasileiros mais pobres. A grande dúvida fica em torno dos caminhos possíveis a tomar pelo Partido dos Trabalhadores nos próximos 8 anos de governo, particularmente em relação às reformas agrária, educacional e política, assunto para outro ensaio. 

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Muito além do PIB


Criada pelo governo e amplificada pela imprensa, a paranoia em torno do crescimento do PIB brasileiro ofende pelo tamanho da miopia de nossos economistas. Vendido como objetivo primeiro da gestão Dilma, confunde-se crescimento com desenvolvimento e, pior, dá-se sobrevida a um índice anacrônico e traiçoeiro. O PIB, contudo, tem seus defensores. Aliás, se crescemos, é devido, principalmente, ao peso de nossas valiosas commodities, cana, soja e minério. Batemos todos os recordes de produtividade agrícola, enquanto definhamos em uma riqueza que leva décadas para desenvolver-se: o capital humano.

Pois bem, deixo aos sábios economistas brasileiros um discurso de um deputado americano, feito em 1968.

"Yet the gross national product does not allow for the health of our children, the quality of their education, or the joy of their play. It does not include the beauty of our poetry or the strength of our marriages; the intelligence of our public debate or the integrity of our public officials. It measures neither our wit nor our courage; neither our wisdom nor our learning; neither our compassion nor our devotion to our country; it measures everything, in short, except that which makes life worthwhile.”
Robert F. Kennedy

Fica outra dica para a nossa equipe econômica: o site http://www.beyond-gdp.eu

Amartya Sen: "HDI is people-centered ... GDP is commodity-centered"

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Luta palestina


O conflito entre o Estado de Israel e o Povo Palestino ganhou contornos mais violentos recentemente. Teme-se que a escalada de violência repita os eventos de 2008, em que ocorreu o massacre de 1400 palestinos e a destruição de Gaza. Além das humilhações diárias a que os palestinos estão sujeitos, o uso desproporcional da força, com o assassinato de mulheres e crianças, envergonha o mundo.



Custo a me acostumar com a facilidade com que o ser humano realiza a guerra. Por mais que se tornem frequentes, a ponto de alguns noticiários ignorarem os conflitos geopoliticamente menos relevantes, a insignificância que a vida humana adquire nesses momentos é inquietante. Da visão humanista, contudo, é preciso partir para a analítica, uma vez que temos interesse em compreender esse processo belicoso. Daí que uma divisão precisa ser feita entre as clássicas guerras entre Estados e os conflitos não convencionais, intraestatais. A ampla variedade das lutas internas exige um recorte conveniente. Por isso, uma particular atenção será dada às lutas populares que buscam a emancipação política, das quais faz parte o caso palestino. A comparação entre os movimentos de independência e as guerras tradicionais será a ferramenta por meio da qual  a permanente guerra palestino-israelense será enquadrada.

"A guerra é a continuação da política por outros meios".

A célebre conceituação de Carl von Clausewitz evidencia o principal objetivo da guerra entre Estados: o interesse nacional. Para a sua consecução, a Realpolitik dos Estados modernos preocupa-se com objetivos estratégicos, econômicos ou territoriais. Questões ideológicas ou mesmo religiosas deixaram de pautar a ação estatal ainda no século XVII, finda a Guerra dos 30 anos (o tratado de Westfalia de 1648 é considerado um marco histórico). Uma característica é, contudo, comum a conflitos antigos e recentes, responsável em grande parte por sua brutalidade: ao se buscar os interesses nacionais, não se medem valores morais, mas ações pragmáticas e estratégicas. A sobrevivência de um Estado depende do poder que este detém no cenário internacional, objetivo pelo qual se justificam a invasão e o extermínio.

Os movimentos de independência e revolucionários são distintos da guerra interestatal por alguns motivos. Talvez o principal seja o caráter popular que os motiva. Enquanto as guerras convencionais são determinadas e dirigidas por agentes estatais, frequentemente contrariando a vontade da maioria (Vietnã, por exemplo), as lutas pela emancipação possuem uma ampla sustentação popular, ainda que comandadas por uma elite política ou econômica, como acontece amiúde. O poder, neste caso, não representa um fim em si mesmo, mas condição indispensável para a mudança da ordem opressora. Os valores morais e ideológicos não são apenas considerados, mas exaltados; são princípios que fundamentam a luta por uma nova sociedade. Assim ocorreram a Revolução Francesa, a Independência Americana, a Revolução Russa, a Revolução Cubana, a descolonização afro-asiática e tantas outras. E valores como a Liberdade, Igualdade, Independência e Justiça prosperaram...


Perdoem-me os reacionários, mas não nego certo apreço por esses movimentos. Embora considere as reformas o primeiro caminho, a mudança, muitas vezes urgente, dificilmente virá por meios pacíficos. Os lacaios que detêm poder e privilégios não largarão o osso, acredite. As lutas revolucionárias embasadas na soberania popular possuem, portanto, uma legitimidade nata, já reconhecida pelos sábios iluministas: “o  governo tirânico rompe o contrato social, permitindo ao povo o uso de seu direito à rebelião”.

Não é preciso ir muito longe para constatar o esforço reacionário para retirar a legitimidade da luta popular. Certamente simbólico, além de eficiente, foi tachar de “terrorismo” o principal meio pelo qual agem os movimentos populares. Junto com o terrorismo, começa-se a construir um discurso para estigmatizá-lo, associá-lo ao fanatismo, à brutalidade e à barbárie. Não pretendo defender qualquer tipo ação armada; a generalização que é, convenientemente, dada ao termo “terrorismo” dificulta uma diferenciação entre a luta popular e ações paramilitares cometidas por Estados ou grupos políticos (Talibã, Líbia, Al Qaeda).

Os palestinos utilizam um número bem variado de meios de luta. Desde os esforços diplomáticos para receber o reconhecimento de organismos internacionais (ONU, UNESCO...) e de Estados, passando pelas manifestações de rua, pela Intifada, pela organização política e, por fim, pelas lutas armadas. Os resultados não têm sido, contudo, alentadores. As poucas tentativas de paz foram superadas pelo regime de extrema-direita do Likud. A fragilidade da democracia de Israel é evidente na manipulação que a sociedade "civil" israelense sofre de seus líderes. Os ataques à Gaza reforçam o discurso de força, de amplo efeito sobre um povo completamente militarizado. Sem nenhuma legitimidade para manutenção da ocupação dos territórios palestinos, já que fere princípios elementares da dignidade humana, Israel conta com o uso bruto da força e do discurso ideológico. Se a primeira é cruel e assassina, a segunda pauta-se no preconceito e na mentira. Isso porque sua luta baseia-se na opressão, no assassinato, na humilhação,  atropelando valores como liberdade, direitos humanos, solidariedade, igualdade. Os estadistas e ideólogos sionistas apoiam-se em “princípios” religiosos e racistas para justificar o indefensável. São, na verdade, subterfúgios retóricos, pois Israel move uma guerra de conquista, em que valores morais são desprezados.



Do lado palestino, não se trata (ainda) de um Estado, mas de um povo que luta pela liberdade. Amparam-se no legítimo direito à rebelião, objetivando o exercício inalienável da soberania popular. Foram aviltados com o despojo de suas terras, processo ainda em curso. Os diferentes partidos políticos mostram as várias faces da resistência, a maioria pacífica. Questiono o uso da força por dois motivos: seu efeito concreto é desprezível e seu impacto na opinião pública internacional, negativo. O caminho deve ser a mobilização internacional pela causa palestina, como foi feito na África do Sul, durante o apartheid. É uma luta longa e muitas vezes ingrata, mas onde será possível colher algum resultado.



O fato é que, embora as ações armadas dos palestinos sejam ineficazes, não se pode comparar a luta pela liberdade com a luta pela conquista. Israel e palestinos possuem objetivos diferentes, desonesta e convenientemente confundidos pela imprensa. O povo palestino merece por fim à opressão e possui, portanto, legitimidade para prosseguir sua luta com todos os meios disponíveis.  

“E dificilmente é preciso mais do que um dia em Gaza para sentir como é tentar sobreviver na maior prisão a céu aberto do mundo, onde cerca de 1,5 milhão de pessoas, em uma faixa de terra de aproximadamente 360 quilômetros quadrados, são submetidas a terror aleatório e punição arbitrária, sem nenhum propósito a não ser humilhar e degradar.” (Noam Chomsky)

domingo, 16 de setembro de 2012

Guerra Santa?


O mundo está horrorizado com a violência praticada por muçulmanos contra repartições diplomáticas estadunidenses ao redor do planeta. A lista de países inclui Nigéria, Iêmen, Egito, Tunísia, Líbano, Israel, Palestina Síria, Irã, Indonésia, Iraque, Sudão e Afeganistão. Impossível não considerar o caráter religioso do movimento, já que a onda de revolta foi desencadeada pela divulgação de um filme em que o profeta Maomé e sua religião são ridicularizados. Culpar o fundamentalismo religioso, contudo, simplifica a análise dos acontecimentos: radicais judaico-cristãos de um lado contra os já estigmatizados radicais muçulmanos, de outro. A explicação não é, entretanto, só superficial mas ingênua. Há de se considerar, ao menos subsidiariamente, os aspectos políticos envolvidos, que vão da Primavera Árabe à política externa do Departamento de Estado Americano para o Oriente Médio.




No fabuloso “O Grande Inquisidor”, conto dentro do clássico “Irmãos Karamazov”, Dostoievski descreve as especificidades da dominação exercida pela Igreja Católica. Após encarcerar Jesus, o inquisidor espanhol inicia um monólogo em que destrói os principais pilares da Igreja. Não é a fé que transforma o homem em rebanho, mas o medo, a fuga de uma realidade inconveniente e, especialmente, a rejeição da liberdade que supostamente fora ofertada pelo Criador. O livre-arbítrio seria, desse modo, um fardo demasiado pesado, sabiamente apropriado pela Igreja, por meio de uma miríade de construções em torno do medo. É em um misto de submissão e ignorância que o homem eventualmente encontra a paz.

Em que pese a importância da devoção religiosa como combustível para a intolerância e violência, é possível ir além da angústia espiritual descrita pelo mestre russo, sobretudo se desejarmos fazer um paralelo político com os acontecimentos recentes. Neste caso, convém analisarmos, rapidamente, a relação da Igreja com a constituição de uma identidade popular forte, aspecto caro a imperadores e a Estados em formação.  Não faltaram exemplos na história. Constantino, fundador da Igreja Católica, embora ele próprio cresse em outros deuses, foi sábio em perceber outras formas dominação além das batalhas. Mesmo o secular e iluminista Robespierre, após condenar e perseguir membros do clero católico, um dos pilares do Antigo Regime, forjou o culto ao Santo Marat, o jornalista incendiário da Revolução Francesa.

Infelizmente, a religião continua a ter papel de destaque na reafirmação dos nacionalismos. O caso mais bem acabado dessa relação encontra-se em Israel, onde nacionalidade e judaísmo se confundem, não só em despautérios sionistas, mas de maneira oficial, como demonstra a exigência do registro do cidadão israelense como judeu1.

Além de Israel, há outros Estados que perpassam por um lento e sofrido processo de consolidação nacional, notadamente os países árabes. Do imperialismo do século XIX ao processo de descolonização de meados do século XX, tais países ficaram sujeitos às disputas políticas das grandes potências mundiais. A Segunda Revolução Industrial incorporou ainda outro elemento explosivo: o petróleo. Verificando atentamente, percebe-se quão recente foram as “independências” da maioria desses Estados. É o caso, por exemplo, da Revolução Político-Religiosa Iraniana (1979), decorrência direta de décadas de “ocidentalização”  forçada, por meio do regime títere do xá Reza Pahlevi, que terminou por criar o regime teocrático atual. A ameaça recente de invasão militar, consubstanciada pela retórica agressiva de EUA e Israel, só garante a continuidade do autoritarismo religioso no Irã.

No território sitiado de Gaza, o partido Hamas, visando ao fortalecimento do nacionalismo palestino, tem acirrado o fundamentalismo religioso, evidente na imposição de certos costumes, como o uso do véu hijab pelas mulheres. O neo-apartheid imposto por Israel aos habitantes palestinos, além dos assassinatos e bombardeios, sem dúvida contribui para a identificação religiosa à causa territorial palestina. 

Poderíamos ainda falar do Afeganistão (1979-89; 2001), Paquistão, Líbano (1982, 2006), Líbia, Etiópia, Iraque (2003), mas não é o objetivo principal desta exposição. Importante, sim, é perceber a existência de uma hostilidade antiga direcionada pelos Estados Unidos a esses países. As efêmeras aproximações não foram suficientes para encobrir o objetivo único e irrestrito do Departamento de Estado americano: a consecução de seus próprios interesses.

Se o motivo religioso não pode, portanto, ser analisado isoladamente dos aspectos políticos, por que motivo ele é apresentado tão frequentemente como a causa principal dos distúrbios? É bem evidente que, retirando a legitimidade das manifestações, anula-se o efeito político almejado pelos revoltosos. Para Edward Said, autor de “Orientalismo”, não é apenas a imensa ignorância que move a caracterização estereotipada da cultura árabe ou islâmica. O etnocentrismo ocidental é favorecido quando se consegue distinguir com facilidade o outro; a civilização da barbárie. A representação da luta política em curso por seu aspecto estritamente religioso e fundamentalista faz parte de um projeto político mais amplo, ardilosa e eficientemente dissimulado.

É impossível precisar com exatidão a parte das manifestações que cabe ao fanatismo. Sem negá-la, ressaltamos o entrelaçamento da questão religiosa ao fortalecimento da nacionalidade, algo ambicionado por muitos Estados em processo de consolidação. O fato de as revoltas recentes estarem ocorrendo em países que passaram pela Primavera Árabe só fortalece esse argumento da construção da identidade. Dentro desse contexto de busca de autonomia e mesmo de sobrevivência, não é difícil eleger um inimigo do nacionalismo árabe. Após a queda dos grandes impérios europeus, a consolidação dos Estados árabes encontra na hostilidade bélica, política e cultural dos Estados Unidos a sua principal oposição e, logo, o alvo preferido dos ataques recentes.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

RETROCESSO





Temo estarmos regredindo como cidadãos. Além de fenômenos mundiais, que evidentemente nos afetam, a exemplo da valorização do consumo, do uso de automóveis cada vez maiores, do aumento da carga horário de trabalho e do preconceito, no Brasil o pensamento reacionário se acirra, particularmente, em algumas áreas. Busco fazer uma rápida descrição desse radicalismo, associando-o a suas possíveis causas, como a herança de duas décadas de ditadura militar e a influência de nossa imprensa conservadora. A ditadura terá, neste ensaio, amplo papel, já que o atual movimento reacionário se fortalece concomitantemente ao revisionismo do período autoritário e da violência então praticada.




Apesar de o conservadorismo não se resumir apenas à manutenção de privilégios, em países com grandes desigualdades sociais é natural que seja grande o confronto direto entre os que anseiam mudanças e os que as evitam a todo custo. No Brasil, a concentração fundiária e de riqueza, decorrentes de um longo processo de colonização, foram responsáveis, em grande parte, pela caracterização da sociedade como a conhecemos. A despeito das diversas tentativas, a ausência de um processo revolucionário, como ocorrera em praticamente todos os países desenvolvidos, permitiu à elite dirigente total controle dos meios de geração e distribuição de riquezas. A sociedade brasileira às vésperas do indecente dia 31 de março encontrava-se no paroxismo das contradições sociais, com extensa organização dos movimentos populares.

Era necessário parar o “carro revolucionário”, tal qual afirmara o político do Império Bernardo Pereira de Vasconcelos quando do movimento que resultou na abdicação de D. Pedro I em 1831. Com ampla participação civil, congregando de empresários a intelectuais, da Igreja aos partidos conservadores, o golpe militar foi um movimento reacionário por natureza. Contra eles, os estudantes, trabalhadores urbanos e rurais, as Ligas Camponesas, sindicatos e uma miríade de partidos de esquerda. Como é comum nesses momentos, os golpistas elegeram dois inimigos: o comunismo e a corrupção. Pouquíssimo foi feito em relação aos corruptos, importantes aliados dos militares. A possível ameaça ao que os milicos chamavam, hipócrita e ironicamente, de “revolução” deu ensejo, contudo, às arbitrariedades e perseguições. Em pouco tempo, intelectuais, políticos e mesmo a conservadora Igreja católica retiraram o apoio ao regime nefasto.

Se chegamos ao fundo do poço como civilização, o movimento de redemocratização pareceu o mais próximo do que se poderia chamar de um “iluminismo brasileiro”. À exceção daqueles que muito prosperaram durante o regime, os brasileiros como um todo se uniram pelos direitos humanos, pelo voto, contra os militares e seus seguidores. Nesse momento histórico, ainda criança, iniciam as minhas primeiras impressões políticas. Estava claro que passáramos por um período obscuro e que, naquele momento, voltávamos a exercer as prerrogativas mais singelas da cidadania.

Progressivamente, a percepção do ocorrido ia se ampliando. Embora a Carta Cidadã de 1988 tivesse nos livrado de boa parte do “entulho autoritário”, cedo perceberíamos que da ferida ainda jorrava sangue. Os militares voltavam aos quartéis, mas a promiscuidade que existira entre civis e militares em torno do aparato repressor deixara sequelas*. Na polícia mantivemos o pior do regime. A sociedade brasileira seguirá pagando o preço por não condenar os assassinatos e as torturas cometidas pelo governo militar. À imputabilidade de outrora, que contava com a anuência dos presidentes militares, soma-se a atual, legitimada por uma anistia farsesca.

Cresci alimentando um medo em relação à polícia. A violência policial, na medida em que é direcionada à periferia e às favelas, tem sido bem aceita pelo restante da sociedade. Quem perdoa as bárbaras torturas de outrora pode conviver com a arbitrariedade de agora. A aberração é frequente e abertamente defendida por políticos que pregam a “tolerância zero” da polícia, campanha historicamente associada a Paulo Maluf, mas que hoje tem sido utilizada ostensivamente pelos tucanos em SP. 





Passados muitos anos da redemocratização, o radicalismo reacionário vai saindo do armário. Amparados muitas vezes pelo anonimato da internet, defendem a truculência policial e recordam nostalgicamente o período militar. Em São Paulo, tido como um dos estados mais desenvolvidos, o governador Geraldo Alckmin nomeou como comandante da Rota um dos envolvidos no massacre do Carandiru, quando 111 presos foram assassinados. Mais recentemente, podemos recordar a ação policial no Pinheirinho, na Cracolândia, na Marcha da Maconha etc. Talvez o melhor símbolo desse reacionarismo tenha sido o sucesso estrondoso da série de filmes “Tropa de Elite”. Enquanto a Zona Sul carioca aplaudia a “política social” do governo do Rio nas ocupações das favelas, seus filhos assistiam ao Capitão Nascimento torturando e matando bandidos. Ainda que o filme seja de boa qualidade, com interessante descrição da realidade do tráfico de drogas, da corrupção da polícia e do surgimento das milícias, ele não esconde a glamourização do BOPE e seus métodos truculentos, postos como um mal menor pelo diretor.

Sem falar das desprezíveis emissoras de televisão, excessivamente toscas, a imprensa escrita participa, a seu modo, da onda reacionária. Embora a elegância não permita que um jornal como a Folha de S. Paulo defenda a violência, este encontra outros meios, mais silenciosos e sutis. A estigmatização que faz dos movimentos populares como os sem-tetos, MST, sindicatos, que por sua vez não dispõem de equivalente meio de defesa, tem servido como uma branda apologia da repressão policial. Infelizmente, falta-nos um Pasquim, que escancare este triste momento por que passamos.


Para ficarmos na Folha, jornal que acompanho, sua participação engloba ainda o que tenho chamado de revisionismo histórico do período autoritário no país. Mais uma vez, se não o defende diretamente, insiste em apontar os crimes cometidos pela esquerda armada e os planos de revolução socialista que esta possuía. Ademais, em seus editoriais recentes, posicionou-se contra a revisão da Anistia, bem como tece ressalvas à tardia tentativa de recuperar nossa memória do período por meio da Comissão da Verdade. Após chamar o regime militar de "Ditabranda", o jornal paulista parece tentar mostrar, portanto, uma nova história, na qual os militares foram as vítimas e os guerrilheiros, os bandidos.

O reacionarismo é um fenômeno amplo, e poderíamos ter abordado outras faces do assunto, como o preconceito.  Sem querer estender demasiadamente, a ideia foi apenas analisar o crescimento do pensamento reacionário no que ele se relaciona com a violência policial e a ditadura. Dessa forma, o foco foi a crescente aceitação da truculência policial e certa tentativa de revisionismo do período ditatorial, este amparado pela imprensa. O reacionarismo brasileiro é certamente bem mais silencioso que seus congêneres europeus, o que esconde, por outro lado, o seu tamanho e risco. Pelo fato de estar amplamente inserido na sociedade, olvidamos de chamá-lo pelo seu verdadeiro e detestável nome: fascismo.

*Elio Gaspari, em “A Ditadura Escancarada”, analisa detalhadamente os efeitos deletérios da tortura na sociedade, já que, além da afronta aos direitos humanos, contamina a sociedade e as instituições governamentais como um todo.